terça-feira, 24 de junho de 2014

Faltava falar de ti

Iniciar uma conversa sobre ti não é coisa fácil; nunca foi. Mas o facto é que a partir do momento que comece a falar de ti, tudo flui, tudo sai naturalmente.
Uma das coisas que eu costumo dizer é que a nossa relação foi repartida no tempo cronológico, em 3 partes.
A primeira parte foi desde que eu nasci e soubeste que eu era rapariga, até aos meus 7 anos; eu sei que uma menina era aquilo que mais querias mas já tinhas perdido a esperança porque, entretanto, já tinham vindo dois rapazes, os manos, e a vida na altura era bastante difícil para ter mais um. Mas lá vim eu, de surpresa. O que eu me ri quando soube que tinha sido o resultado de um preservativo furado; tal era a minha gana de vir ao mundo!
Não me lembro da primeira vez em que me pegaste ao colo, mas pelo que a mãe dizia, tinhas medo de me pegar porque já tinha sido assim com os outros dois; brincavas e mexias nas minhas mãozinhas, mas distante. Já aqui a tua capacidade para demonstrar o teu amor já estava a ser testada e tu nem percebeste... Até aos meus 7 anos, lembro-me de ti super protetor, embora muito ausente; lembro-me das tuas palmadinhas no rabo (a brincar) que às vezes me irritavam profundamente, mas era das poucas coisas que nos mantinha próximos. Pode parecer esquisito, mas foram as pequenas brincadeiras contigo (das quais, muitas não me lembro, infelizmente) que me faziam olhar para ti com um olhar deslumbrado.
Depois dessa idade, não sei porquê, senti-te a afastares-te, senti-te mais frio. E foi aí que comecei a estar pouco em casa: ora ia para casa de uma avó ou ia para a casa da outra.
Eu sei que tinhas que trabalhar para trazer sustento para casa, para nos dares o melhor que podias. Mas, sabes, faltou tanta coisa essencial... Muito mais do que um prato de comida! Apesar dos teus sacrifícios, acredita que passei muita fome daquilo que eu sempre soube que tinhas em abundância: amor.
Contudo, é desta fase que guardo as nossas melhores memórias; poucas mas nossas.
A segunda parte foi quando entrei na fase da adolescência, uma fase complicadíssima da tua e da minha vida. Houve tanta coisa que aconteceu e que tu não soubeste; houve tanta coisa que me magoou e que eu guardei com tanto rancor dentro de mim, que me roeu durante anos, até à pouco tempo. Na altura eu tive que lidar com as minhas dores da infância somadas às dores de me sentir a crescer; crescer significou afastar-nos mais ainda do que já estávamos. E eu não queria!
A adolescência foi o meu tempo terrível, e ambos concordamos com isso. Foi ali que eu mais precisei de ti; do teu colo, do teu abraço, do teu beijo, das tuas palavras sábias (que sempre tinhas para os outros, menos para os teus filhos), do teu silêncio para me ouvir. E as birras que eu fiz para te captar a atenção?Incontáveis.
Lembras-te da primeira tentativa de suicídio? Ali foi o expoente máximo do teu medo, lembro-me que foste com a mãe até ao meu quarto e que pediste para conversar comigo. Já era tarde, pai. Eu ali já não ouvia ninguém porque tu e eu já não falávamos a mesma língua à muito tempo, já estávamos tão distantes que era como se tivéssemos, cada um na janela da sua casa, frente a frente, a tentarmos comunicar com uma imensidão de ruído à nossa volta.
Lembro-me de teres dito, a chorar, que tu e a mãe amavam-me muito, que não entendiam o que se passava comigo e que queriam entender. A minha voz estava demasiado embargada para dizer o que quer que seja porque, para vos dizer o que se passava eu tinha que recuar muito no tempo, tinha que vos contar as coisas que vos passaram ao lado e que me racharam ao meio; a dor era tanta que as palavras dissolviam-se nela. E a última coisa que me disseste foi "nós gostamos muito de ti e estamos aqui para o que precisares". E saíram do meu quarto. A verdade é que nunca estiveram.
Com 12 anos não era suposto ter que conversar com vocês como adulta, apesar de com 6 anos a minha professora primária vos ter dito, aos dois, que eu tinha bastante maturidade e que eu preferia conversar com adultos do que com os miúdos da minha idade e que isso era bom, mas mau ao mesmo tempo porque me poderia trazer problemas no futuro. E não é que trouxe mesmo?! Acho que te esqueceste disso, e partiste do principio que a tua menina não iria dar trabalho como os manos, porque ela era a bebé crescida!
Pai, eu sempre fui um ser humano normal, não uma sobredotada; e até mesmo esses também sofrem.
Cresci na dureza; sozinha; a ter que compreender muitas das coisas que é suposto um pai orientar para as compreender; tive que aprender como se lutava por aquilo que eu queria para a minha vida, sem saber muito bem como isso se fazia; tive que aprender a chorar sem colo; tive que me construir com as pedras que a vida me ia dando.

Estive muito longe de alcançar o castelo, pai.

Com o vir para Lisboa e com o nascimento do Gabriel, voltei a precisar de ti. Essa foi outra fase importante da minha vida, da qual não fizeste parte. Não bastava a oscilação hormonal, dita normal num pós-parto; ter que me adaptar a uma nova vida com um bebé nos braços sem saber como agir e reagir com ele; ainda tive que lidar com a tua distância, mais uma vez.
Talvez tivesses pensado que eu tinha todo o suporte que necessitava (e tive), e que não iria fazer diferença se estivesses aqui ou não. Porra, pai! Depois da minha adolescência, esse foi outro momento importante (se não o mais importante da minha vida) em que eu precisei desesperadamente de ti! Sabes o quanto foi difícil ser uma coisa que nem tu nem ninguém me tinham mostrado como ser; mãe? Sabes o quanto foi difícil dar o que eu não sabia como dar? Acredita, não há nada mais assustador do que ter um bebé nos nossos braços e perguntar "e agora, o que é que eu vou fazer contigo?".
E foi assim até ao primeiro aniversário dele; andei num misto de rejeição, de revolta e de culpabilização. O desespero foi tanto, que cheguei ao ridículo de culpar o pai do meu filho por me ter engravidado...
Eu gritei por ti, mas não tinhas ouvidos para ouvir.
Mas mais uma vez, a vida foi-me orientando, Deus foi-me mostrando o caminho (porque foi a ele que me agarrei para sobreviver), e eu fui crescendo até àquilo em que me tornei hoje.
A terceira parte do nosso tempo cronológico, começou à 1 mês. Quando a tua casa caiu e se estilhaçou toda, foi aí que me ouviste, foi aí que te disse tudo aquilo que aos 12 eu não consegui. Falei-te da tua ausência, da tua falta de afeto e atenção, das coisas más que me fizeram debaixo do teu nariz e que tu nem percebeste.
Eu magoei-te, pai. Desculpa.
Não que eu tenha tido alguma culpa, não! Peço desculpa, porque aquilo que não conseguiste fazer: proteger-me; a dada altura eu vi-me a fazê-lo. Queria-te poupar, queria manter-te à margem de mais dor, queria ilibar-te da culpa; só queria ajudar-te a seres feliz.
Não é isto que um pai e uma mãe fazem?
Sei que a verdade também faz crescer e sei que dar-ta, fez a diferença. Também sei que hoje vives num mar de culpa e sofrimento por descobrires, finalmente, o quanto eu sofri durante estes anos todos na tua ausência.
Mas pai, eu estou bem!
Eu não construí um castelo, mas ando a construir uma casa com pilares de cimento. Ainda não a acabei, é verdade; talvez com a tua ajuda eu tivesse construído uma mais depressa, e talvez esta que hoje construo um bocadinho, todos os dias, não esteja totalmente pronta até eu morrer. Mas sabes o que me consola? É que esta casa abrigará o meu filho, e outros que Deus me queira dar. Eles só terão que a melhorar, porque crescer também passa por aqui: tornar a nossa casa confortável para que a vida seja mais suportável, porque fácil ela não é. A nossa função como pais é só deixar um legado; do que somos e do que vivemos. O resto é com eles, é dar-lhes asas e quando estiverem prontos, eles voam.

Crescer sem ti foi muito chato, pai! Mas apesar disso, cresci e estou a desabrochar de uma forma bonita. No fundo, a tua vida deu-me algumas lições, porque ao olhar para ti eu vejo um exemplo daquilo que não quero ser nem fazer. E acredita, isto não é ironia, é mesmo bom.
Ao ter a tentação de ser e fazer com o meu filho aquilo que tu fizeste comigo (os hábitos são muito fortes pai, acredita), lembro-me de que não quero ser como tu, volto atrás e corrijo a tempo. E tu sabes que é assim; nas nossas conversas, no modo como me vês a educar o Gabriel e quando lhe digo as coisas como elas são sem medo e sem inventar, nas brincadeiras com ele; tu vês a mãe em que me tornei.
E isto não quer dizer que não te ame! Nada disso. Durante este tempo, aprendi a amar-te de uma forma tão bonita, tão genuína, tão pura. Não tenho qualquer medo de to dizer! E tu sabes isso.
Porque pai, eu vejo que apesar da tua idade, também estás a crescer e isso deixa-me feliz.

Ultimamente tenho pensado muito em ti, do que passou, do que fomos um para o outro, da minha evolução, e cheguei a uma conclusão: por tudo o que aprendi e vivi, por tudo aquilo que me tornei hoje, eu não te trocaria por nenhum outro pai. E se eu tivesse que voltar a renascer, eu só queria se existisses tu!
És um amor insubstituível, és um pai que não foi perfeito mas és meu e abençoada fui eu por te ter! E isto pode parecer contraditório, tendo em conta o que sofri na minha vida. Mas não é, e sabes porquê? Porque apesar das dificuldades, tu deste-me a maior preciosidade que um ser humano pode dar a outro: a vida. Só isso, é o suficiente para eu te ser eternamente grata.
E se isto não é amor, na sua forma mais pura e perfeita, então não sei o que é o amor.






ML



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